ICMS sobre fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação
No último dia 27 de outubro, foi publicada decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio que admitiu o ingresso da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações – ABRINT como amicus curiae no Leading Case RE n. 714.139/SC. Referido caso trata da constitucionalidade das alíquotas diferenciadas de ICMS incidentes sobre o fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação, em patamar superior ou semelhante àquelas alíquotas aplicadas aos produtos supérfluos, tais como bebidas, tabaco e armas, entre outros. O processo aguarda apreciação definitiva pela Supremo Tribunal Federal (STF) desde 26 de setembro de 2014, quando teve sua repercussão geral reconhecida.
Apesar do caso tratar especificamente da legislação de ICMS referente ao Estado de Santa Catarina (SC), eventual posicionamento a ser firmado pelo Plenário da Suprema Corte impactará em todos os demais casos em tramitação no Poder Judiciário sobre essa matéria, mesmo em outros Estados da Federação. Em razão disso, trata-se de uma das disputas tributárias mais relevantes em tramitação no STF em termos jurídicos, econômicos e sociais, considerando que: (i) “o ICMS é o imposto mais importante dos Estados-membros e do Distrito Federal, responsável que é pela maior parte da receita tributária desses entes”[1]; e (ii) diversos Estados da Federação enfrentam grave crise econômica-fiscal e buscam auxílio financeiro do Governo Federal para reorganizar suas estruturas governamentais[2].
Em resumo, o STF analisará a constitucionalidade da medida imposta por diversos Estados da Federação em face ao artigo 155, §2o da Constituição Federal (CF/88), o qual estabelece que o ICMS “poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. Em outras palavras, o STF verificará se a fixação de alíquotas do ICMS em percentuais diferenciados deve observar a essencialidade do produto ou serviço para a sociedade, no sentido de que, quanto mais essencial for a mercadoria ou o serviço, menor deverá ser a sua tributação, promovendo, assim, o seu amplo e irrestrito acesso. Quanto mais supérfluo o bem ou serviço, maior será a sua tributação para coibir a utilização do produto.
Nesse sentido, vale ressaltar que o constituinte, ao dispor que o ICMS “poderá ser seletivo em função da essencialidade”, não estabeleceu simplesmente uma recomendação aos entes tributantes, mas sim uma determinação. Conforme bem leciona Roque Antônio Carrazza, com amparo no magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, o termo “poderá” não se relaciona com uma mera faculdade do legislador, mas sim com “uma norma cogente, de observância obrigatória” [3].
Não se ignora a linha de entendimento de que a seletividade é facultativa. No entanto, ainda assim deve-se ponderar que a adoção de alíquotas variáveis torna obrigatória a observância da essencialidade do bem, conforme entendimento de Hugo de Brito Machado Segundo. Para ele, a seletividade é facultativa e a essencialidade é obrigatória[4].
Evidentemente, é por intermédio do Princípio da “Seletividade/Essencialidade” que se atende o regramento constitucional e se equilibra a carga tributária do ICMS suportada pelo consumidor final para o consumo dos produtos e serviços essenciais. Ainda, não se mostra acertada uma interpretação do supracitado princípio em desarmonia com os princípios da capacidade contributiva e da isonomia (igualdade) tributária, porquanto nenhum imposto (aqui incluindo o ICMS e suas regras/princípios próprios) pode ser exigido em detrimento dos limites constitucionais ao poder de tributar.
Inclusive, foi por entender dessa forma que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 634.457/RJ[5], se posicionou no sentido de que em relação ao ICMS “não obstante a possibilidade de instituição de alíquotas diferenciadas, tem-se que a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais”.
Na mesma linha de entendimento do precedente mencionado acima, os Tribunais de Justiça dos Estados da Bahia (BA)[6], do Rio de Janeiro (RJ)[7] e do Piauí (PI)[8] declararam que a tributação da energia elétrica e dos serviços de telecomunicação pelo ICMS, quando aplicada em patamar idêntico ou superior àquele aplicado aos produtos supérfluos, viola o art. 155, §2o, inciso III da CF/88.
Contudo, apesar dos precedentes mencionados acima, verifica-se que diversas legislações estaduais referentes ao ICMS continuam não respeitando o princípio constitucional da seletividade em função da essencialidade, conforme se verifica, por exemplo, na tabela abaixo que aponta o percentual aplicado por cada estado em relação a energia elétrica, serviços de telecomunicação e demais produtos supérfluos:
Como visto acima, determinadas alíquotas do ICMS estabelecidas pelas legislações estaduais não observam o princípio da seletividade e essencialidade. Em alguns casos as atividades de fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação possuem alíquota com percentual idêntico e até superior em relação aos demais produtos considerados “supérfluos”, sendo perceptível que tais produtos muitas vezes são reconhecidos até mesmo como prejudiciais à saúde. Em tais situações, a alíquota do ICMS para energia elétrica e serviços de telecomunicação deveria ser inferior, observando, ao menos, a alíquota básica/genérica de cada legislação estadual. Inclusive, há previsão em lei no sentido de que as atividades de fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação possuem notório caráter essencial para toda a sociedade, conforme dispõe o art. 10, incisos I e VII da Lei n. 7.783/1998[9].
Esse indevido aumento no encargo tributário, além de ferir o princípio da seletividade em função da essencialidade, viola também o inciso IV, do artigo 150 da CF/88[10], pois representa tributação confiscatória sobre o consumo da energia elétrica e serviços de telecomunicações. Nesse caso, o confisco se revela pelo alcance do patrimônio dos contribuintes, com o objetivo único e exclusivo de arrecadar recursos aos cofres públicos estaduais, sem observar a razoabilidade e a proporcionalidade.
Salutar registrar o parecer apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) no Leading Case supracitado, Parecer PGR n. 1.106/2015[11], no qual (i) considerou ser inconstitucional os dispositivos constantes na Lei Catarinense n. 10.297/96 que estabeleceram alíquotas do ICMS superiores à alíquota básica/geral incidente sobre energia elétrica; e (ii) com base em possíveis graves reflexos econômicos e sociais da declaração de inconstitucionalidade, sugeriu a modulação dos efeitos da decisão pro futuro, na forma autorizada pelo artigo 27 da Lei nº 9.868/1999[12].
Vê-se, portanto, que o Ministério Público Federal (MPF) corrobora o entendimento aqui defendido, no sentido de que, devido à essencialidade do fornecimento de energia elétrica e dos serviços de telecomunicação, estes não podem se sujeitar à alíquota do ICMS superior ou idêntica àquela aplicada aos produtos supérfluos, sob pena de violação ao Princípio da Seletividade e Essencialidade, previsto no art. 155, §2º, inciso III, da CF/88.
Em relação ao segundo ponto acima, o Parquet considera que a modulação é a alternativa menos gravosa para a solução da controvérsia, no entanto, ousamos divergir a esse respeito pelo fato de a modulação de efeitos se mostrar tecnicamente incompatível com as especificidades do caso concreto. Conforme magistério de Andrei Pitten Veloso[13], somente em situações excepcionais a modulação pode ser admitida, quais sejam, nos casos de mudança radical na jurisprudência do STF (o que não se verifica em relação ao tema analisado) e de adoção por este de uma exegese constitucional inusitada, imprevisível até mesmo ao mais prudente legislador. Admitir a modulação na matéria objeto do presente artigo, em nossa visão, atenta contra a Supremacia da Constituição Federal.
Com efeito, conforme leciona Andrei Pitten Veloso[14], a restituição dos valores exigidos de forma inválida pelos Fiscos Estaduais não geraria insegurança jurídica a se contrapor à Supremacia da Constituição, pelo contrário, tal situação “reforçaria a segurança jurídica dos contribuintes quanto à efetividade dos seus direitos garantidos constitucionalmente“.
Não se discorda que a modulação de efeitos é uma ferramenta disponível, sobretudo em períodos de evidente crise política e econômica. Contudo, o uso desmedido desse recurso é criticável, lastreado em supostas violações ao princípio da proporcionalidade, quando em verdade busca privilegiar “planos políticos” e distancia-se do efetivo controle de constitucionalidade das normas. Não se deve utilizar essa prerrogativa condicionada para justificar decisões eminentemente políticas.
À vista de tais considerações, o critério a ser utilizado para a fixação de alíquotas diferenciadas do ICMS pelas legislações estaduais quanto ao fornecimento de energia elétrica e serviços de comunicação deve observar a seletividade em função da essencialidade do produto ou mercadoria, caso contrário culminará em afronta à isonomia, à seletividade tributária e à capacidade contributiva, não sendo caso de modulação de efeitos das decisões que declarem a inconstitucionalidade de normas estaduais.
Fonte: JOTA