Repercussões do compliance no direito privado

O que é o compliance?

O compliance compreende o estabelecimento de mecanismos de autovigilância e autorresponsabilidade pelas pessoas jurídicas.1 Cuida-se da adoção de sistemas para assegurar o bom funcionamento do ambiente corporativo à luz não apenas das políticas internas de cada sociedade, como também das normas legais em vigor. Assim, compliance é o conjunto de medidas adotadas pela pessoa jurídica para prevenir e minimizar os riscos de violação às leis decorrentes das atividades que pratica.2

Destaque-se que não há um único modelo de compliance que possa ser adotado indistintamente por todas as pessoas jurídicas. Justamente por se tratar de sistema de prevenção de riscos e de respeito à legalidade, precisa se adequar à concreta atividade empreendida pela corporação e aos riscos e à regulamentação que lhe são próprios. Assim, cada programa a ser implementado tem amplo espaço de conformação pela entidade, desde que seja efetivo e atenda ao objetivo primordial de evitar infrações à ordem jurídica e de, uma vez verificadas, contribuir para o imediato retorno ao estado de normalidade.

O direito brasileiro atribui efeitos jurídicos ao compliance?

Cada vez mais o legislador tem imputado efeitos jurídicos explícitos ao compliance, seja como (i) prática incentivada pela concessão de consequências favoráveis (v. g. dosimetria da pena em sanções administrativas)3 ou (ii) obrigação legal em sentido estrito (como no caso da imposição, pela legislação federal, da obrigatoriedade de as empresas estatais adotarem programas de compliance).4

As previsões legais não esgotam toda a potencialidade jurídica do compliance, notadamente no campo do direito privado. Com efeito, ainda que não decorra de imposição normativa, a adoção de programas de compliance pode repercutir no âmbito contratual e também na responsabilidade civil subjetiva, na medida em que são searas que valoram a conduta (do contratante ou do causador do dano).

Sublinhe-se, ainda, que o compliance apresenta impactos positivos para a imagem e a inserção da pessoa jurídica no mercado. Nesse sentido, a exigência de programas de integridade não é apenas legislativa, mas também dos parceiros comerciais, consumidores, funcionários, colaboradores, na medida em que o compliance busca assegurar ambiente corporativo sério, saudável e comprometido com a legalidade.

Quais repercussões do compliance no direito privado têm sido reconhecidas?

Os tribunais têm gradativamente considerado a existência de programa sério de compliance como parâmetro interpretativo para a resolução de questões envolvendo a atividade empresarial.

Nessa direção, a 4ª Turma do STJ se valeu do compliance como argumento adicional a justificar a impossibilidade de a apólice do seguro de responsabilidade civil de diretores e administradores cobrir a prática de atos dolosos.5

Em outro caso, no âmbito de ação movida por companhia com vistas à imposição de responsabilidade civil ao seu ex-diretor por alegada gestão temerária e exorbitância de suas funções, a 4ª Turma do STJ entendeu que uma das razões ensejadoras da condenação consistia no fato de que, “como administrador principal da companhia tinha por obrigação implementar e fomentar boas práticas de governança corporativa, utilizando-se, para isso, de parâmetros/instrumentos legais e morais com vistas a aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para a sua perenidade”.6

Observe-se, a propósito, a íntima relação entre as noções de compliance e de governança corporativa. Nesse sentido, veja-se o excerto do Código de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC): “Os agentes de governança têm responsabilidade em assegurar que toda a organização esteja em conformidade com os seus princípios e valores, refletidos em políticas, procedimentos e normas internas, e com as leis e os dispositivos regulatórios a que esteja submetida. A efetividade desse processo constitui o sistema de conformidade (compliance) da organização”.

Finalmente, a 36ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que o descumprimento a regras de compliance seria fundamento legitimador da resilição unilateral do contrato de conta corrente por parte da instituição bancária.7

Esses casos são meramente ilustrativos daquilo que parece constituir uma verdadeira tendência da expansão dos efeitos jurídicos do compliance no âmbito do direito privado. Em razão da influência que o compliance exerce no respeito à legalidade por parte da pessoa jurídica, pode-se afirmar que cada vez mais casos surgirão em que o programa de integridade será levado em consideração para valoração da conduta do agente, notadamente no campo contratual e da responsabilidade civil subjetiva.

A adoção de programas efetivos de compliance pode influenciar a responsabilidade civil da pessoa jurídica?

Vive-se, hoje, sistema dualista da responsabilidade civil, em que convivem a cláusula geral de responsabilidade subjetiva (art. 186 do Código Civil)8 e a cláusula geral de responsabilidade objetiva (parágrafo único do art. 927 do Código Civil).9

A responsabilidade civil subjetiva tem como pressuposto do dever de reparar a verificação da culpa do agente causador do dano. A culpa atualmente é apreendida de maneira objetiva (culpa normativa). Isso porque a identificação do agir culposo se dá mediante a comparação da conduta do ofensor com standards objetivos de comportamento que sejam exigíveis à luz das circunstâncias do caso concreto.

De outra parte, a responsabilidade civil objetiva prescinde da demonstração de culpa do agente. Este não se exime do dever de reparar ao argumento de ter adotado os melhores padrões de diligência, uma vez que a deflagração da obrigação de indenizar independe da análise da reprovabilidade da sua conduta.

Dessa forma, no âmbito da responsabilidade civil, o compliance só terá impacto, em regra, se esta for subjetiva, isto é, se for necessário aferir a reprovabilidade da conduta do ofensor. Com efeito, a existência de programa efetivo de compliance pode revelar expressiva diligência por parte da pessoa jurídica, a apontar para a ausência de divergência entre a sua conduta e o padrão que se lhe poderia exigir nas concretas circunstâncias em que o dano foi produzido.

Para essa análise devem ser levados em consideração os diversos parâmetros que concorrem para a robustez do programa de compliance, tais como: comprometimento da alta administração; recursos adequados às particularidades da organização (porte, mercado de atuação etc.); autonomia e independência do órgão ou funcionário responsável pela implementação dos programas de compliance; análise contínua dos riscos aos quais a entidade está exposta; realização de treinamento e instrução dos colaboradores para a implementação da política de integridade da pessoa jurídica, bem como para a utilização de canais de denúncia; monitoramento contínuo e efetivo do programa; documentação das iniciativas relacionadas ao compliance; aplicação de punições internas nas hipóteses de infração às disposições legais e ao Código de Ética da corporação; revisão e adaptação do programa ao longo do tempo e em atenção à modificação das atividades da pessoa jurídica.10

Como se percebe, o cenário contemporâneo apresenta inequívocas perspectivas de ampliação das repercussões jurídicas do compliance, especialmente no que diz respeito à seara ainda pouco explorada dos seus efeitos no âmbito contratual e da responsabilidade civil subjetiva. Portanto, seja por imposição legal, seja por incentivo normativo, seja por estímulo concorrencial e negocial, revela-se irreversível a tendência de expansão e consolidação da relevância dos programas de compliance no ambiente corporativo brasileiro, que estimulam a ética e o respeito à legalidade, prevenindo e remediando a ocorrência de infrações à ordem legal.

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1 Cf. FRAZÃO, Ana. Programas de compliance e critérios de responsabilização de pessoas jurídicas por ilícitos administrativos. In: ROSSETTI, Maristela Abla; PITTA, Andre Grunspun (Coords.). Governança corporativa: avanços e retrocessos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, pp. 43-44.

2 O “Guia Programas de Compliance”, editado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, assim define o compliance: “Compliance é um conjunto de medidas internas que permite prevenir ou minimizar os riscos de violação às leis decorrentes de atividade praticada por um agente econômico e de qualquer um de seus sócios ou colaboradores. Por meio dos programas de compliance, os agentes reforçam seu compromisso com os valores e objetivos ali explicitados, primordialmente com o cumprimento da legislação. Esse objetivo é bastante ambicioso e por isso mesmo ele requer não apenas a elaboração de uma série de procedimentos, mas também (e principalmente) uma mudança na cultura corporativa. O programa de compliance terá resultados positivos quando conseguir incutir nos colaboradores a importância em fazer a coisa certa” (http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf. Acesso em 19.04.2018 às 15h). V. tb. definição constante no art. 41 do Decreto 8.420/2015, que regulamenta a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013).

3 O artigo 7º da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), ao tratar das circunstâncias atenuantes das sanções administrativas, faz referência expressa à “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.

4 V. Lei 13.303/2016, arts. 6º e 9o.

5 “A apólice do seguro de RC D&O não pode cobrir atos dolosos, principalmente se cometidos para favorecer a própria pessoa do administrador, o que evita forte redução do grau de diligência do gestor ou a assunção de riscos excessivos, a comprometer tanto a atividade de compliance da empresa quanto as boas práticas de governança corporativa. Aplicação dos arts. 757 e 762 do CC” (STJ, 3ª T., REsp. 1.601.555/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 14.2.2017).

6 STJ, 4ª T., REsp 1.475.706/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julg. 6.11.2014.

7 Do voto do Desembargador Relator extrai-se: “É certo que contratos de conta corrente, por serem destinados à longa duração, geram na parte a justa expectativa de continuidade. Desse modo, mostrar-se-ia ilícita a resilição de avenças dessa natureza de forma imotivada, pelo ferimento frontal à boa-fé objetiva, que deve ser respeitada de forma cogente, nos termos do artigo 422 do Código Civil. Ocorre, entretanto, que, no caso em tela, a conduta do réu foi lícita, na medida em que a rescisão do contrato teve por justificativa o não atendimento às regras de compliance por parte da autora. (…) Com efeito, nestes autos pôde-se concluir que o encerramento da conta foi ocasionado por violação às regras de compliance pela autora. Afinal, programas de integridade em empresas dependem do envolvimento e da colaboração de sua alta administração para serem efetivos, o que, evidentemente, não ocorreu no âmbito da empresa autora” (TJSP, 36ª C.E.D.P., Ap. Civ. 1013073-57.2016.8.26.0100, Rel. Des. Sérgio Rui, julg. 16.11.2017).

8 Art. 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. V. tb. o caput do art. 927 do Código Civil, in verbis: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

9 Art. 927, parágrafo único, do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

10 Tal listagem de parâmetros foi extraída do “Guia Programas de Compliance” do CADE para a identificação de programas robustos de compliance concorrencial (CADE. Guia Programas de Compliance, pp. 15-29. Fonte: http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf. Acesso em 19.04.2018 às 15h). V. tb. art. 42 do Decreto 8.420/2015 e o Programa de Integridade: Diretrizes para Empresas Privadas elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU).

Fonte: JOTA