Lei deixou de reconhecer formas de manipulação de mercado, avalia juiz
Na visão do magistrado Marcelo Costenaro Cavali, hoje juiz auxiliar do ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), tanto a lei quanto a norma da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que tratam de manipulação de mercado têm falhas e precisam ser ajustadas.
Ex-titular da 6ª Vara Especializada em Crimes Financeiros da Justiça Federal de São Paulo, Cavali considera que a Lei 13.506/17, que alterou o processo administrativo na CVM, “deixou de prever expressamente formas de manipulação reconhecidas em praticamente todos os sistemas que a punem, como a realizada através de difusão de informações falsas”.
Enquanto isso, a norma administrativa que trata de manipulação (ICVM 08/79) “foi mal redigida desde o seu início”. “Os elementos das quatro figuras que são enquadradas no conceito ‘guarda-chuva’ da infração administrativa de manipulação de mercado são confusos e há muita sobreposição”, avalia o juiz.
Cavali sentenciou os envolvidos por insider trading no caso Sadia-Perdigão, o primeiro caso criminal contra mercado de capitais transitado em julgado no Brasil. Na noite desta sexta-feira (15/6), às 18h, em São Paulo, na Livraria da Vila, o magistrado lança um livro sobre outro ilícito financeiro: “Manipulação do Mercado de Capitais – Fundamentos e limites da Repressão Penal e Administrativa, pela editora Quartier Latin“.
De acordo com o juiz, as diferenças de classificação da prática de spoofing entre a CVM e o autorregulador (BSM) “decorrem dos termos amplos e, em alguma medida, da sobreposição que existe entre essas figuras na ICVM 08/79”.
De onde saiu a ideia de escrever um livro sobre manipulação de mercado?
Quando eu exercia a jurisdição na 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, especializada em crimes financeiros, o Ministério Público Federal apresentou uma denúncia em que se imputava a prática do delito de manipulação de mercado. Como a acusação era incomum, fui estudar o tema e não encontrei nenhuma decisão e praticamente nenhuma doutrina a respeito. Foi a necessidade que fez com que eu me interessasse pelo tema, do ponto de vista profissional. Depois, percebendo a ausência de produção doutrinária a respeito, decidi escrever minha tese de doutorado sobre ele.
Anteriormente, o sr. defendeu uma revisão nas regras de manipulação. Por quê?
A Lei 13.506/17, que alterou o tipo penal de manipulação de mercado, previsto no art. 27-C da Lei 6.386/76, foi aprovada com sem nenhuma discussão sobre esse aspecto. A lei tem vários aspectos positivos, especialmente no que se refere ao processo administrativo sancionador no Banco Central e na CVM, mas, na minha opinião, no que se refere à parte dos crimes contra o mercado de capitais, ela continua a falhar em alguns pontos.
Em primeiro lugar, a lei deixou de prever expressamente formas de manipulação reconhecidas em praticamente todos os sistemas que a punem, como a realizada através de difusão de informações falsas. Embora, como eu defendo no livro, essa forma esteja abarcada pela redação ampla do tipo penal, seria importante sua previsão expressa.
Em segundo lugar, a lei continua exigindo requisitos subjetivos, intenções específicas por parte do agente para que o crime se consume. Assim, a lei dispõe que as manobras fraudulentas sejam “destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário”. Na verdade, o importante é que as fraudes tenham potencial para afetar o processo de formação de preços dos valores mobiliários, independentemente de terem sido destinadas a esse fim.
Em terceiro lugar, a lei deixa de estabelecer critérios de diferenciação mais claros para diferenciar a infração administrativa de manipulação do mercado, aplicada pela CVM, e o crime de manipulação de mercado, a ser julgado pelo Poder Judiciário.
Por fim, a lei poderia ter enfrentando um problema típico dos dias atuais, em diversos âmbitos, em que há sobreposição de sanções aplicadas por diferentes instituições públicas. Decisões recentes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos têm estabelecido critérios para que as instâncias evitem a duplicidade de sanções, afastem decisões contraditórias ou, no mínimo, estabeleçam formas de atenuação da punição. O que eu sugiro no livro, especificamente para o mercado de capitais, é que a lei preveja um mecanismo de solução dos conflitos que surgem entre os órgãos de enforcement. Cito o exemplo francês, em que conflitos entre a autoridade do mercado financeiro e o Ministério Público são resolvidas de antemão, sem que haja sobreposição dos processos sancionadores.
Recentemente, a CVM julgou o primeiro processo de spoofing, modo tecnológico de manipular o mercado de ações ou futuro. Alguns advogados, fora os das partes condenadas, defendem que esse tipo de ilícito não deveria se enquadrar na ICVM 8, como aconteceu. Qual sua visão sobre isso?
Da mesma forma que ocorre no delito de lavagem de dinheiro, as formas de manipulação são captadas a partir do que ocorre na realidade e adaptáveis à evolução tecnológica. Desde que a literatura começou a identificar tipologias de manipulação de mercado, considera-se que a realização de negociações somente com a finalidade de gerar uma falsa aparência de interesse por um título caracteriza manipulação.
Spoofing, a seu modo, é “condição de criação artificial de preço” ou “manipulação de preço”?
Spoofing é, sem dúvida, uma forma de manipulação de mercado, como reconhecido no mundo todo. Aliás, em tempo de negociações realizadas por computadores ou robôs com base em algoritmos, o spoofing é talvez a forma mais característica de manipulação da atualidade.
A dificuldade que a CVM tem encontrado em classificar o spoofing como “condição de criação artificial de preço” ou “manipulação de preço” decorre dos termos amplos e, em alguma medida, da sobreposição que existe entre essas figuras na ICVM 08/79.
Como, em regra, o spoofing gera condições artificiais de demanda ou oferta de um ativo e, ao mesmo tempo, é uma prática utilizada para manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário e induzir terceiros à sua compra e venda, normalmente preencherá os elementos tanto de uma figura como de outra.
A ICVM 08/79 está ultrapassada?
Eu não diria que está ultrapassada, eu diria que ela foi mal redigida desde o seu início. Os elementos das quatro figuras que são enquadradas no conceito “guarda-chuva” da infração administrativa de manipulação de mercado são confusos e há muita sobreposição. Porém, é preciso dizer que a jurisprudência administrativa da CVM colocou alguma ordem nessas figuras, de modo que hoje existe um grau razoável de segurança jurídica para que os operadores do mercado saibam quais são as condutas proibidas e quais são aquelas permitidas.
Parece-me que seria prudente uma atualização da norma, para que a regra escrita reflita efetivamente a compreensão atual da CVM.
O sr. foi o juiz que sentenciou o caso Sadia-Perdigão, por insider trading, já transitado em julgado. De lá pra cá, além de não haver trânsito final em processos de crimes contra o mercado de capitais, são poucos os julgamentos e, ainda mais, poucas denúncias. O MPF comenta que a CVM não comunica ilícitos a ele e, por isso, não há investigações e denúncias criminais. Por outro lado, a CVM apresentou números de comunicações, tanto a MP’s estaduais quanto a Federais. Na sua visão, quem está falhando?
Nem todas as condutas que caracterizam infração administrativa constituem, ao mesmo tempo, crime. Portanto, não impressiona o fato de haver mais condenações pela CVM do que pelo Poder Judiciário. Pelo contrário, é assim mesmo que deve ser: só os casos mais graves de violações às regras do mercado devem ser levados à esfera penal.
Dito isso, quem tem de fazer o juízo sobre a ocorrência ou não de crime é o Ministério Público – mais especificamente o Ministério Público Federal, já que a jurisprudência tem se consolidado no sentido de ser da Justiça Federal a competência para julgar esses crimes. Portanto, cabe à CVM comunicar ao Ministério Público Federal sempre que apurar possíveis delitos, deixando ao Procurador da República a decisão entre oferecer a denúncia ou não.
Eu não saberia responder se existe uma falta de comunicação da CVM ao MPF ou não. Para responder a essa pergunta seria necessário examinar todas as comunicações da CVM por um período e acompanhar o andamento que o MPF deu a elas. O que eu posso afirmar é que, de fato, existem muito poucas denúncias oferecidas pelo MPF por crimes contra o mercado.
Comenta-se principalmente na Polícia Federal que os grandes casos, principalmente de crimes financeiros, acabam “ficando para trás”, no sentido de que muitas “velharias” tem que ter prioridade, sob possível prescrição. O sr. concorda?
Eu concordo que a realidade é essa, existem muitos processos tramitando em varas especializadas em crimes financeiros que são totalmente banais. Por exemplo, o art. 19 da Lei 7492 prevê o crime de obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira. Como o conceito de financiamento engloba qualquer empréstimo bancário obtido para finalidade específica, os juízes de varas especializadas acabam tendo de julgar casos de financiamento de motos usadas, obtidos com documentos falsos, em valores irrisórios.
Mas o a realidade não tem de ser essa, pelo contrário. Cabe aos delegados utilizarem de modo eficaz os escassos recursos públicos, aí incluídos o seu tempo e as suas habilidades. Devem, portanto, dar prioridade a crimes mais graves, deixando de lado as “velharias”.
Crimes contra o mercado de capitais como insider trading e manipulação não estão na agenda dos órgãos de persecução penal?
Eu não saberia te responder isso, estou afastado da jurisdição de primeira instância há algum tempo. Quem teria condições de responder melhor são o MPF e a DPF. Mas eu penso que cada vez mais os órgãos de persecução penal têm se dado conta da gravidade e da importância desses delitos, de forma que a tendência é de aumento e aperfeiçoamento das investigações.
Falta especialização a juízes titulares de varas de crimes financeiros para julgar esses casos?
Não, penso que os juízes dessas varas são bem preparados para examinar esses delitos. Claro que, como são temas novos, demora um tempo até que o conhecimento se consolide.
Como magistrado e por sua experiência, quais são as peculiaridades de analisar/julgar casos de mercado de capitais?
Há outros delitos nas varas especializadas também bastante complexos, como casos de gestão fraudulenta de instituições financeiras, que exigem conhecimento de direito bancário, de contabilidade, de produtos financeiros etc.
Mas, sem dúvida, os crimes contra o mercado estão entre os casos mais difíceis das varas especializadas, especialmente a manipulação de mercado. O uso indevido de informações privilegiadas é um pouco menos complexo de compreender, embora muito difícil de ser comprovado.
Como o sr. avalia a chegada do acordo de leniência no mercado de capitais (BC e CVM)?
Veio em boa hora. Muitas vezes não se consegue identificar com clareza esses crimes e infrações administrativas, em razão da dificuldade probatória a que eu fiz referência. O acordo de leniência pode quebrar os pactos de silêncio que levam à impunidade.
Porém, é importante que exista uma atuação conjunta da CVM e do MPF nesses casos, para acertar, ao mesmo tempo, o acordo de leniência e o acordo de colaboração premiada, para dar segurança a quem faz o acordo administrativo de que também será beneficiado, desde que coopere efetivamente com a persecução criminal, na esfera penal.
As multas antigas da CVM, antes da lei 13.506/17, estavam defasadas? Agora, aumentou-se de 500 mil para 50 milhões.
O valor anterior era irrisório. Para que possa exercer com efetividade mínima sua função de prevenção de novas infrações, é preciso que a CVM tenha razoável poder de fogo.
Como avalia a cooperação de CVM e BC em casos de crimes financeiros?
Acho fundamental. Os temas relacionados ao mercado financeiro e ao mercado de capitais são normalmente complexos. A expertise desses órgãos é muito importante para uma melhor compreensão dos temas.
Na esfera penal, além de dever oficiar ao Ministério Público Federal quando apurar a ocorrência de crime – nos termos do art. 12 da Lei 6.385/76, do art. 28 da Lei 7.492/86 e do art. 9º da Lei Complementar 105/2001 –, a CVM também pode atuar como assistente de acusação, nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/86, art. 26, parágrafo único). A CVM efetivamente tem feito isso, em casos importantes, como na primeira condenação pela prática do crime de uso indevido de informação privilegiada.
Além disso, a CVM possui também legitimidade para, como amicus curiae, atuar nas ações que tenham por objeto matéria incluída na sua competência, podendo oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, conforme previsto no art. 31 da Lei 6.385/1976.
Essas atuações se inserem num contexto de tentar esclarecer as complexidades do mercado. Quando passei um tempo pesquisando para a tese nos EUA, tive a oportunidade de acompanhar um julgamento sobre a manipulação da taxa Libor por operadores de um banco sediado em Londres. O que mais me chamou a atenção nesse caso foi a didática utilizada no julgamento para explicar a leigos – o caso foi julgado por um júri, formado por donas de casa, policiais, uma professora do ensino fundamental, entre diversas pessoas do povo – o funcionamento do sistema financeiro, o significado da taxa Libor e as consequências práticas da sua manipulação na vida real das pessoas. A utilização das chamadas testemunhas experts foi essencial para o esclarecimento das questões mais complexas.
A demora no julgamento de processos é péssima, não só no âmbito do mercado de capitais, mas em qualquer âmbito. Justiça tardia é justiça falha. Concordo que, no mercado de capitais, que é muito dinâmico, esse problema fica ainda mais realçado.
Mas é importante dizer que essa demora não é exclusiva do Poder Judiciário. Na esfera administrativa o processo também é ainda lento. Para dar um exemplo concreto, houve uma apuração sobre manipulação de mercado ocorrida entre 2003 e 2004.
No âmbito criminal, recebi a denúncia em 2012 e proferi a sentença em 2014. O TRF da 3ª Região confirmou a condenação em 2017. Já o processo administrativo sobre os mesmos fatos foi iniciado em 2007, a CVM decidiu em 2010 e a decisão do CRSFN a respeito foi prolatada somente em 2016. Houve, portanto, uma demora muito maior para apreciação em segundo grau na esfera administrativa do que no âmbito judicial.
Fonte: JOTA