As horas in itinere foram mesmo suprimidas pela reforma trabalhista?
O inciso XIII do art. 7º da CF/88 prevê o direito dos trabalhadores à duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
O caput do art. 58, que não foi alterado pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), repete parte do dispositivo constitucional ao prever que a duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de oito horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
O § 1º, igualmente mantido intacto, esclarece que não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários.
O § 2º, por sua vez, sofreu importante alteração, visto que antes previa que “o tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução”.
Ao determinar que “o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”, a nova redação do dispositivo pretendeu, evidentemente, afastar o direito ao recebimento do que a doutrina e a jurisprudência denominou de horas in itinere ou em trânsito.
A matéria encontra-se sumulada no TST, seja no que se refere ao tempo de deslocamento da residência até o local de trabalho, quanto da portaria até o local de trabalho, sendo ambos computáveis na jornada de trabalho:
Súmula nº 90 do TST
HORAS “IN ITINERE”. TEMPO DE SERVIÇO (incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I – O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90 – RA 80/1978, DJ 10.11.1978)
II – A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas “in itinere”. (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 – inserida em 01.02.1995)
III – A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas “in itinere”. (ex-Súmula nº 324 – Res. 16/1993, DJ 21.12.1993)
IV – Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas “in itinere” remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 – Res. 17/1993, DJ 21.12.1993)
V – Considerando que as horas “in itinere” são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)
Súmula nº 429 do TST
TEMPO À DISPOSIÇÃO DO EMPREGADOR. ART. 4º DA CLT. PERÍODO DE DESLOCAMENTO ENTRE A PORTARIA E O LOCAL DE TRABALHO – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.
Considera-se à disposição do empregador, na forma do art. 4º da CLT, o tempo necessário ao deslocamento do trabalhador entre a portaria da empresa e o local de trabalho, desde que supere o limite de 10 (dez) minutos diários.
As horas in itinere, ainda que não representem um período de efetivo trabalho, trata-se de tempo em que a mão de obra está à disposição do empregador e decorrem da opção do empreendedor de estabelecer-se em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular, tratando-se de risco do negócio que deve ser assumido pela empresa, nos termos do art. 2º da CLT.
O novo § 2º do art. 58, portanto, não resiste à interpretação sistemática da consolidação das leis do trabalho.
Se o empregador optou por instalar-se em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular, certamente extraiu vantagens dessa opção, de modo que o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até o local de trabalho trata-se de tempo à disposição do empregador e deve ser computado na jornada de trabalho.
Essa afirmação deve ser ainda mais contundente quando se trata do tempo de deslocamento dentro do estabelecimento, conforme defendemos em outra obra:
Se o empregador designa o trabalhador para exercer sua atividade em posto de trabalho distante da portaria ou da sede da empresa (ex.: atividade rural, construção de estradas etc), o tempo de deslocamento evidentemente deve ser considerado à disposição do empregador, pois coube a ele definir a dinâmica do negócio e otimizar os seus espaços. Se não fez isso de forma adequada ou se os meios tecnológicos ou logísticos não permitiram que a dinâmica fosse outra, não pode transferir os prejuízos decorrentes para o trabalhador.
Esse é o fundamento do art. 294 da CLT, que não foi revogado e permanece conferindo aos trabalhadores em minas de subsolo o direito de computar na jornada de trabalho o tempo despendido da boca da mina ao local do trabalho e vice-versa, podendo ser aplicado por analogia por uma questão de igualdade entre os trabalhadores, até porque sempre foi um dos fundamentos da Súmula nº 90 do TST.
Os argumentos para não aplicação do dispositivo ainda podem ser reforçados pela vagueza do conceito de posto de trabalho. A respeito, assim questionamos:
O que vem a ser o posto de trabalho e quando será possível considerá-lo como efetivamente ocupado para fins de cômputo do tempo de trabalho? Tudo que o trabalhador faz antes de se sentar na frente da máquina poderá ser excluído do tempo de trabalho porque apenas enquanto estiver nessa posição estará ocupando efetivamente o seu posto de trabalho? E se em determinado dia a máquina não funcionar, o empregado não terá ocupado efetivamente seu posto de trabalho e terá o dia descontado?
A efetiva ocupação do posto de trabalho costuma ser apenas parte do dia de trabalho, mas nem por isso no restante do dia o trabalhador não esteve à disposição do empregador, realizando outras atividades, deslocando-se, por qualquer meio, para realizá-las ou ser treinado para executá-las ou aguardando ordens quanto às atividades a serem cumpridas, de modo que todos esses momentos devem ser computados na duração do trabalho normal e observarem os limites do inciso XIII do art. 7º da CF/88.
Ademais, o art. 21, inciso IV, “d”, da Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios da Previdência Social) prevê que os acidentes ocorridos no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado, serão considerados acidentes do trabalho por equiparação.
Veja-se que o reforço de argumentação do legislador veio apenas para o caso de o meio de locomoção ser o veículo do próprio trabalhador, de modo que se o veículo for disponibilizado pela empresa, evidentemente que a responsabilidade será dela, justamente porque durante tal período o empregado está à disposição da empresa.
Quanto ao dispositivo revogado (§ 3º do art. 58, que havia sido incluído pela Lei Complementar nº 123/2006), dispunha sobre a possibilidade de fixação em instrumento coletivo de tempo médio de deslocamento para as microempresas e empresas de pequeno porte, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, bem como a forma e a natureza da remuneração. Diante da suposta exclusão do direito ao pagamento das horas in itinere decorrente da alteração do § 2º, tal dispositivo deixaria de ter aplicabilidade.
Essa possibilidade também era admitida para empresas de maior porte, desde que guardasse proporcionalidade com o tempo efetivamente gasto nos deslocamentos, a fim de não configurar subversão ao direito à livre negociação coletiva e verdadeira renúncia. Nesse sentido, a seguinte decisão da SBDI-I:
Horas in itinere. Norma coletiva que fixa o número de horas a serem pagas em quantidade muito inferior ao tempo gasto no trajeto. Invalidade. Em regra, é válida a norma coletiva que estabelece um tempo fixo diário a ser pago a título de horas in itinere (art. 7º, XXVI, da CF). Todavia, o tempo ajustado deve guardar proporcionalidade com o tempo efetivamente gasto nos deslocamentos, a fim de não configurar subversão ao direito à livre negociação coletiva e verdadeira renúncia a direito garantido por lei (art. 58, § 2º, da CLT), resultando em prejuízo ao empregado. In casu, foi ajustado o pagamento de uma hora diária, a despeito de o tempo efetivamente gasto nos percursos de ida e volta ao trabalho ser de duas horas e quinze minutos. Com esse entendimento, a SBDI-I, em sua composição plena, por unanimidade, conheceu do recurso de embargos, por divergência jurisprudencial, e, no mérito, por maioria, deulhe provimento para restabelecer o acórdão do TRT que condenara a empresa ao pagamento, como extras, de duas horas e quinze minutos diários a título de horas in itinere e reflexos. Vencidos os Ministros Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, João Oreste Dalazen, Antonio José de Barros Levenhagen, Ives Gandra da Silva Martins Filho, Brito Pereira e Dora Maria da Costa. TST-E-RR- 470-29.2010.5.09.0091, SBDI-I, rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, 24.5.2012. (Informativo TST nº 10) (grifos nossos)
Contudo, o que se tem na prática é que as horas in itinere, na forma como definidas pela Súmula nº 90 do TST, não foram efetivamente suprimidas pela reforma trabalhista.
O § 2º do art. 58 da CLT trata-se de regra geral que estabelece que, normalmente, o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até o local de trabalho ou vice-versa, por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho. No entanto, conforme esclarece o Procurador do Trabalho Bruno Choairy Cunha de Lima:
[…] caso o transporte fornecido se afigure como um meio necessário à prestação de serviços – seja por ser o local não servido por transporte público ou de difícil acesso –, implicando em subtração de relevante tempo livre do empregado por elemento vinculado à atividade econômica (local de trabalho), deve-se considerar o tempo como de trabalho, na literalidade dos artigos 2º, 4º e 294 da CLT.
Tal entendimento sobre o tema, inclusive, foi chancelado pela Corte de Justiça da União Europeia, que decidiu que o período de deslocamento deve ser contabilizado como hora de trabalho e pago como tal quando não há um lugar fixo de trabalho, pois “o fato dos trabalhadores começarem e terminarem a jornada em suas casas advém diretamente da decisão do empregador de abolir os escritórios regionais e não do desejo dos próprios trabalhadores”, conforme constou da decisão. Para a Corte, “exigir que eles absorvam o fardo da escolha dos empregadores seria contrário ao objetivo de proteger a segurança e saúde dos trabalhadores perseguida por esta diretiva [da União Europeia que define que empregados não podem trabalhar mais de 48 horas por semana], que inclui a necessidade de garantir a eles um período mínimo de descanso”.
Por todos esses argumentos, é negativa a resposta à pergunta que intitula este artigo.
Fonte: JOTA