O fim da seletividade na proposta de reforma tributária

Na semana passada, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção de São Paulo, realizou audiência pública para debater a proposta de reforma tributária em andamento na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 45, de 2019.

O ponto central da PEC é a simplificação do sistema tributário, pela reunião da maior parte dos tributos sobre o consumo em um único imposto: o IBS, imposto sobre bens e serviços. Em linhas gerais, tal imposto seria não cumulativo, com apropriação integral dos créditos ao longo da cadeia.

Além disso, a alíquota do IBS seria única para todos os bens e serviços, vedada a concessão de incentivos fiscais de qualquer natureza. Suas receitas seriam administradas por um órgão central, que faria a distribuição da arrecadação entre União, Estados e municípios.

Há muitos argumentos para se contrapor à PEC e a ofensa ao pacto federativo é um deles, como já escrevi nesta coluna. Neste texto, focarei em outro ponto, ainda pouco explorado, sobre a PEC: a eliminação da seletividade do IPI e do ICMS.

Como mencionado, o IBS teria uma alíquota única e uniforme para todos os bens, sejam eles de luxo, supérfluos ou de primeira necessidade.

Para os defensores da proposta, a eliminação integral dos benefícios fiscais é fundamental para conferir maior racionalidade ao sistema tributário e consequente retomada do crescimento econômico do país. Defendem, ainda, que a tributação sobre o consumo não deve ser utilizada como mecanismo de realização de justiça distributiva ou com finalidades estranhas à arrecadação.

A justiça fiscal, alegam, deve ser feita na ponta da despesa, com gastos sociais voltados à redução da desigualdade e, ainda, via crédito ao consumidor de baixa renda – mecanismo que se aproxima da nota fiscal paulista, por exemplo, que devolve ao consumidor final uma parcela do ICMS incidente na operação, mediante a inserção do CPF do cidadão na nota fiscal. Há, todavia, muitas falhas nessas ponderações.

Em primeiro lugar, é evidente que o aumento da carga tributária incidente sobre produtos hoje considerados essenciais resultará no agravamento da desigualdade social, cujos níveis já são alarmantes. A tributação sobre o consumo é inerentemente regressiva e a ausência de qualquer benefício fiscal, somada à adoção de uma alíquota elevada sobre vendas de bens e serviços (fala-se em 20% ou 25%), resultará na tributação proporcionalmente mais alta dos mais pobres.

Disso resultará perda evidente de poder aquisitivo para essa grande parcela da população, com impactos relevantes no crescimento econômico: sociedades mais iguais são desejáveis não apenas por demandas de justiça, mas também em razão da maior eficiência econômica que agregam.

Quanto à devolução de parte do imposto em créditos para a população de baixa renda, os contra-argumentos são ainda mais fortes.

Como é sabido, o Brasil enfrenta uma crise fiscal severa desde 2014, com sucessivos cortes e contingenciamentos de despesas. Recentemente, o governo federal, pela primeira vez na história, acionou a exceção contida na regra de ouro da responsabilidade fiscal para ser capaz de honrar despesas assistenciais e previdenciárias. Simplesmente prever que haverá devolução de valores a esses consumidores não é garantia do efetivo pagamento. Despesas como essas são as primeiras a serem contingenciadas em cenários de ajuste fiscal.

Além desse argumento, há outro mais substantivo. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária é mandamento constitucional (artigo 3º, inciso I). Medidas supostamente distributivas que reforçam estereótipos negativos, como ensina Sandra Fredman, embora forneçam alívios de ocasião a seus beneficiários, perpetuam estigmas e agravam as desigualdades sociais que se propõem a combater.

Em políticas de assistência social, tais mecanismos podem ter utilidade pontual e emergencial. Mas funcionar como mecanismo central de justiça tributária em uma sociedade como a brasileira, repleta de desigualdades e discriminações, jamais.

A devolução de tributos pagos em forma de créditos apenas para uma camada da população reforçará estereótipos sociais. A experiência mostra isso: programas existentes de transferência de renda, por exemplo, são duramente criticados por, supostamente, desestimularem seus beneficiários a sair da pobreza. O uso de créditos como forma de compensar o aumento da tributação sobre os bens de primeira necessidade criará um “bolsa-tributos” permanente, com todos os estigmas inerentes, mas sem a garantia dos reembolsos: o Brasil é o país onde a administração deve, não nega, e paga quando quiser.

Por fim, quanto ao argumento de que a tributação sobre o consumo não deve ser utilizada para promover a justiça fiscal: de fato, é nesse sentido que caminha a literatura. Porém, quando se nega à tributação do consumo a possibilidade de se ocupar com pautas distributivas, o foco está na tributação progressiva. O uso de benefícios fiscais nas operações com bens de primeira necessidade não apenas é amplamente aceito, como é estimulado como medida de mitigação da regressividade inerente a essa base tributária.

Portanto, de todas as perspectivas, a eliminação por completo da seletividade da tributação sobre o consumo não é desejável. Mais do que isso, corre sério risco de ser julgada inconstitucional, com todas as consequências negativas à segurança jurídica aí inerentes.

Fonte: Valor Econômico