Advogado deve informar planejamentos suspeitos ao Fisco?

Com o intuito de tentar conter a sonegação fiscal estimada na ordem de 70 bilhões de euros, a Comissão Europeia abriu uma consulta pública no último dia 10 sobre a possibilidade de obrigar assessores fiscais, contadores e advogados a informar aos governos sobre planejamentos tributários agressivos que poderiam facilitar fraude ou evasão fiscal.

A consulta, que vai até 16 de fevereiro de 2017, acontece na esteira do escândalo do Panamá Papers, que mostrou o papel das assessorias fiscais na criação de estruturas offshore para pagar e se evadir de impostos. Apenas no Reino Unido, em 2014, a evasão fiscal foi estimada em 2,7 bilhões de libras esterlinas.

A consulta pública europeia abre uma discussão interessante: cabe incluir advogados no rol de profissionais que devem informar as autoridades sobre o planejamento tributário agressivo de seus clientes?

Para um procurador do estado de São Paulo que atua na área tributária, ouvido em caráter reservado, a resposta é sim. No entanto, segundo ele, talvez fosse mais efetivo responsabilizar o contador e o advogado que fazem aconselhamentos agressivos que resultem num ilícito do que obrigá-los a reportar uma conduta.

“Dificilmente conseguimos responsabilizar um advogado ou contador. Recentemente tentamos responsabilizar uma advogada que fazia parte de um grupo, mas o juiz responsabilizou todos os integrantes de um grupo econômico, menos ela”, diz.

Além do procurador, a reportagem do JOTA ouviu a visão de um promotor e de advogados criminalistas e tributaristas sobre o assunto.

Heleno Torres, advogado e professor de direito financeiro e tributário da USP
Acho muito difícil uma norma como esta ser aprovada, sinceramente. Além disso, seria muito difícil importá-la para cá. O contador ou o advogado não podem promover ou orientar ações de ilicitude. É incorreto e merece ser sancionado em qualquer parte do mundo. O planejamento tributário agressivo está numa zona cinzenta entre o limite da lei e o abuso e é muito sensível criminalizar isso. O advogado tem o poder de declinar de uma ação e o dever de orientar que a pessoa não exerça uma atividade que seja ilícita, defendendo o estado democrático de direito. A partir daí a decisão é do cliente, não do advogado. Agora, o profissional ter de informar a órgãos de controle sobre aquela tentativa de ilicitude é demais porque ele praticou aquilo que o estatuto lhe reserva: o dever de orientar em grau de confiabilidade e confiança. Isto afeta gravemente o exercício da advocacia.

Pierpaolo Bottini, advogado e professor livre docente de direito penal da USP
Na minha opinião, a medida impede frontalmente o exercício da atividade da advocacia. Como será possível conhecer profundamente a atividade de seu cliente, seja para fazer o trabalho de prevenção ou de defesa, tendo a obrigação de se reportar ao poder público? Perde-se a confiança, que é fundamental para o exercício da profissão. Tudo que importe em transformar o advogado num notificador de atividades ilícitas fere de morte a profissão da advocacia e o princípio da ampla defesa. Vários profissionais que podem ser obrigados a fazer esta notificação – como os contadores, por exemplo. O advogado não é um deles.

Gilberto Fraga, advogado tributarista, sócio do Fraga, Bekierman & Cristiano
Uma das garantias que revestem a profissão do advogado é o sigilo profissional. É algo que deve ser inviolável, cláusula que está prevista no estatuto da OAB. Exigir que um advogado reporte uma determinada conduta de seu cliente é violar o sigilo profissional que deve existir na relação. A própria questão da evasão fiscal é muito subjetiva. Aos olhos do fisco, uma conduta pode ser caracterizada como evasão, enquanto aos olhos do contribuinte, ela é uma conduta absolutamente lícita. Tornar o advogado, o auditor, corresponsável por isso, me parece algo absolutamente temerário, inadequado.

Fábio Bechara, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo
Tenho dúvidas a respeito da legalidade da proposta, se ela está delegando, em tese, a responsabilidade de investigar para o particular. Talvez a proposta não tenha sequer efetividade. Acredito que seria mais interessante estabelecer o dever de informar toda operação a partir de um determinado corte, como, por exemplo, os bancos têm de fazer junto ao Coaf quando a operação ultrapassa o valor de R$ 10.000. Essa informação deveria permanecer acobertada pelo sigilo, mas poderia ser usada pelo poder público para uma eventual investigação.

Renato Silveira, advogado e professor titular de Direito Penal da USP
Genericamente, em termos de assessores ficais, contadores, e tudo mais, acho a medida correta. Ela se enquadra no panorama que encontramos no âmbito europeu em termos de prevenção a crimes. Quanto a enquadrar advogados na mesma medida, pensando na Europa, não gosto da proposta, mas entendo. No Brasil, é diferente. Essas questões teriam que ser relativizadas porque o não pagar impostos não necessariamente significa crime – já que há possibilidades de pagamento com multas até a ação, o que extingue a punibilidade criminal. Também entendo que haveria um cerceamento da atuação do advogado, por causa da questão do sigilo profissional. Ele pode estar sendo objeto de consulta. O cliente vai lá para saber se algo é correto ou não. Ou diz “soneguei imposto e quero pagar, qual a melhor forma?”. Se, ato contínuo, tiver que denunciá-lo, entendo haver uma inversão de valores.

Daniela Gusmão, membro da comissão de direito tributário da OAB-RJ
O sigilo do advogado tem sido reiteradamente usurpado ultimamente, acabamos de ter uma situação dessas quando a conversa de um cliente com seu advogado foi para o ar. Se as coisas continuarem como vão caminhando, a questão da prerrogativa do advogado não vai se sobressair em nenhuma discussão. Vai ficar a cargo de quem dizer se é elisão ou evasão? O advogado vai virar um fiscal da Receita, relatando o que está sendo feito sem condições técnicas de dizer se é evasão ou não é? O Estado está abrindo mão de seu poder entendendo que não é capaz de investigar sozinho. Não está dando conta de entender as soluções novas que se dão no mercado e precisa de ajuda de profissionais externos – sem treinamento para tanto. Como um empresário vai procurar alguém que poderá delatá-lo? Essa proposta pode acabar com o mercado de advogados.

Fonte: JOTA