Regina Helena Costa: nenhuma proposta de reforma se preocupa com Justiça tributária

Em uma reforma tributária, a principal preocupação deveria ser com a Justiça tributária — isto é, fazer com que o peso dos tributos recaia em maior medida sobre a parcela mais rica da população e diminuir a carga tributária cobrada das famílias mais pobres. Assim, o objetivo mais relevante de uma reforma deveria ser reduzir a regressividade do sistema tributário brasileiro. Essa é a opinião da ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“A reforma tributária seria uma excelente oportunidade de se pensar em Justiça tributária e eu não vi em nenhuma dessas propostas uma preocupação com isso. É uma pena”, disse.

Em entrevista ao JOTA, Costa avaliou que as principais propostas de reforma tributária em discussão se concentram em unificar tributos para simplificar o sistema tributário, mas salientou que em um país marcado pela desigualdade social nem sempre as soluções mais simples são as mais justas.

O que eu temo é que em nome da simplificação e da unificação se leve a cabo uma reforma que não pense minimamente na Justiça. Estamos em um país essencialmente desigual

Ministra Regina Helena Costa, do STJ

Por fim, a ministra apontou que podem causar discussões no STF reformas tributárias que alterem o poder que os estados e municípios têm de decidir sobre a própria tributação. A unificação de tributos que envolva o ICMS, estadual, e o ISS, municipal, e que ofereça em troca apenas uma fatia da arrecadação poderia em tese ferir o pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição.

Por enquanto estão em discussão três principais propostas de reforma tributária. A PEC 45/2019, apresentada pelo líder do MDB, Baleia Rossi (MDB-SP), se baseia no projeto do economista Bernard Appy e unifica IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS em um único tributo, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

No Senado, o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) apresentou a PEC 110/2019, que cria um IBS resultante de nove tributos: IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide combustíveis, salário-educação, ICMS e ISS. O modelo se baseia em outra PEC, que havia sido aprovada em comissão especial sob a relatoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).

Já o governo federal estuda apresentar um texto que unifica tributos federais, cria uma contribuição sobre transações financeiras e reduz as alíquotas de contribuição previdenciária pagas pelo empregado e pelo empregador.

A ministra Regina Helena Costa integra a 1ª Turma e a 1ª Seção do STJ, colegiados responsáveis por julgar controvérsias de Direito Público, a exemplo de conflitos tributários entre empresas e o fisco. Costa é professora de Direito Tributário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) desde 1985. A ministra ingressou no STJ em 2013.

Leia os principais trechos da entrevista:

Para fazer uma reforma tributária seria necessário mexer na Constituição? É difícil escapar de uma PEC?

No Brasil é impossível escapar. Se quiser fazer uma reforma estrutural, precisaria emendar a Constituição e emendar imensamente.

O ponto é: qual reforma se quer? Dizer que o sistema é ruim, não concordo. Ele é complexo, intrincado. Agora, não necessariamente ele é ruim. Alguns ajustes poderiam ser feitos em nível infraconstitucional [por meio de leis ordinárias e complementares]. E se for mudar estruturalmente o sistema, também não se pode achar que a mudança constitucional vai resolver tudo. Há problemas que estão nas leis.

A simplificação é o princípio mais desejado de uma reforma tributária?

Ninguém em princípio é contra simplificação. Mas vamos simplificar como? As propostas que eu vi – a do Baleia Rossi e a do [Luiz Carlos] Hauly – juntam vários tributos que incidem sobre o consumo em um só, o IBS. Hoje cada imposto desse está distribuído na competência de uma pessoa política: IPI, PIS e Cofins da União, ICMS dos estados e ISS dos municípios.

Para fazer a unificação retira-se a competência dos estados e municípios, é o primeiro problema que eu vejo. O principal imposto do estado é o ICMS, e do município é o ISS. A União nem vou dizer que perde muito porque tem a maior fatia de competências tributárias, o maior número de impostos, um monte de contribuições. A União está em uma posição cômoda do ponto de vista de repartição de competências tributárias na federação.

Estados e municípios é que ficam em uma situação delicada. Vejo com preocupação essa questão do princípio federativo, é preciso respeitar a federação.

A ideia de simplificar é boa para o contribuinte, empresários, empresas. Mas os estados vão trocar a competência plena por uma repartição de receitas?

Esse ponto pode causar um problema no Supremo?

Em tese sim. Há quem entenda que há ofensa à federação. Aqui entra a diferença entre o poder constituinte originário e poder constituinte derivado. O originário é a Assembleia Constituinte que fez a Constituição de 1988, eleita para isso, que não tem limitações. Derivado é o poder de emendar a Constituição: muito mais limitado, é o Congresso Nacional investido de poder revisor da Constituição.

A federação é cláusula pétrea da Constituição. Não tenho posição formada sobre isso, mas acho que é um argumento forte. Acho complicado, poderia haver discussão, sim.

Qual deveria ser a maior mudança trazida por uma reforma tributária?

Se se quer fazer uma reforma tão impactante, a preocupação maior a meu sentir é Justiça tributária. Um sistema que se traduza em uma tributação de boa qualidade, equilibrada, que respeita a capacidade contributiva das pessoas físicas e jurídicas.

Com todas as vênias, não vi nenhuma proposta que se preocupe em melhorar o sistema tributário do ponto de vista de Justiça

Essa proposta [de reforma tributária], quando unifica os tributos todos no IBS abandona uma regra que existe tanto para o IPI quanto para o ICMS que é uma regra de Justiça. O IBS será cobrado sem diferença de alíquota, querem um tributo neutro.

A PEC 45/2019 retira a isenção tributária sobre os produtos da cesta básica, por exemplo.

Isso é complicado porque a Constituição estabelece um princípio muito importante, que foi minha dissertação de mestrado: o princípio da capacidade contributiva. Cada um vai contribuir para as despesas do Estado na medida das suas possibilidades econômicas. Quem tem menos vai pagar menos, quem tem mais vai pagar mais.

Tanto o IPI quanto o ICMS têm uma regra de seletividade em função da essencialidade das mercadorias. Esses impostos vão atingir de maneira mais suave bens essenciais, como comida, cesta básica, que todos consomem. O que é supérfluo, como joias, pode ter alíquota mais alta.

Seja constitucional ou infraconstitucional a reforma deve se preocupar com a Justiça, calibrar melhor a carga tributária sobre as pessoas segundo a aptidão econômica.

Isso no Imposto de Renda dá para visualizar muito bem. Mas com impostos sobre consumo – que são justamente aqueles unificados no IBS – você não consegue fazer isso, a não ser pela regra da seletividade, que eles vão abandonar.

A tributação no Brasil é muito baseada no consumo?

Nos países desenvolvidos a maior parte da carga tributária está sobre a renda ou o patrimônio, que é a renda acumulada. Quem consegue acumular renda é rico, porque além de consumir consegue guardar. Uma parte pequena da tributação fica sobre o consumo, porque o rico e o pobre consomem, é muito difícil de distingui-los no consumo.

Se eu comprar arroz e feijão e uma pessoa muito pobre também, nós vamos pagar o mesmo preço. Como fazer Justiça nessa situação? Temos aptidões econômicas diferentes, mas estamos comprando a mesma coisa. Por isso existe a seletividade, uma forma de dizer que o arroz com feijão vai ter menos imposto que o filé mignon, porque quem come filé mignon demonstra que pode pagar mais, então pode pagar um imposto maior.

O que acontece no Brasil? A carga tributária se concentra no consumo, e tem um pouco no patrimônio e um pouco na renda. Esse é um sistema regressivo e injusto. Ao tributar o consumo, tributa igualmente pobres e ricos. Mas é o patrimônio e a renda que os diferenciam, e estes deveriam ser determinantes do tratamento tributário.

A tributação regressiva só concentra o patrimônio nas mãos de poucos. Quem não tem patrimônio nunca vai conseguir ter, porque é tributado no consumo com o mesmo rigor que o rico. Se a alimentação é cara, para o pobre é muito mais cara porque ele tem pouca aptidão econômica, e o rico vai pagar o mesmo preço do pobre.

A reforma tributária seria uma excelente oportunidade de se pensar em Justiça tributária e eu não vi em nenhuma dessas propostas uma preocupação com isso. É uma pena.

A PEC 45/2019 fala em devolver o valor pago em tributos para quem está cadastrado em programas sociais de redistribuição de renda. Esse mecanismo não reduziria a regressividade da tributação?

Se isso for feito é uma maneira de minimizar. O que eu temo é que em nome da simplificação e da unificação se leve a cabo uma reforma que não pense minimamente na Justiça. Estamos em um país essencialmente desigual, tem muito mais gente pobre. Se vai fazer uma reforma tributária a maioria são eles, como fazer uma reforma que desconsidere essas pessoas? Essa [proposta de devolução do dinheiro pago com tributos] seria talvez uma válvula de escape.

O problema é que a preocupação com a Justiça não parece ser uma prioridade?

Esse é o problema. No fim pode passar a unificação e isso ser deixado de lado. Precisa se buscar [a redução da regressividade] ou dessa maneira ou de alguma outra.

Não vi ninguém falando: “vamos fazer um sistema mais justo”. Fala-se de um sistema mais simples, mais transparente, mais rápido, mais fácil, unificado.

Há muitas simplificações que não são justas. O grande desafio é buscar algo que seja viável, prático, mas que não se desgarre da ideia de Justiça.

Como você vai criar um imposto igual para todo mundo? Seria presumir que todos são iguais do ponto de vista econômico, e não são. Isso ninguém vai ousar dizer.

A ofensa ao princípio da capacidade contributiva é outra questão que pode chegar ao STF?

Também. Como todos podem ser tributados do mesmo jeito? Só em uma sociedade hipotética em que todos tivessem os mesmos ganhos e condições.

Acho uma coisa complicada esse negócio de devolver dinheiro pelo CPF, não sei como operacionalizar isso. Mas alguma coisa precisa ter. O que não pode é simplesmente abandonar esses princípios e dizer que a tributação será igual para todo mundo. No fundo é a isonomia que está em jogo.

Ao tratar igualmente os que são diferentes não se está fazendo igualdade, mas criando desigualdade

 

O governo federal também estuda apresentar uma proposta de reforma tributária.

O Marcos Cintra [secretário da Receita Federal] sempre defendeu o imposto único, que acho um pouco difícil pela mesma razão, você não pode tratar todo mundo do mesmo jeito. Esse modelo unificaria várias incidências. Toda essa coisa de simplificação é em princípio interessante, não sou contra, mas o foco só está sendo esse.

O Ministério da Economia também planeja substituir a oneração da folha de pagamentos e alíquota de contribuição previdenciária paga pelo trabalhador por uma contribuição sobre transações financeiras.Mudar a forma de custeio da Previdência Social nesse momento é uma boa ideia?

Não sei dizer o que seria melhor. Provavelmente só estão pensando em impacto financeiro, receita. Mas se você vai mexer em um sistema, a ideia é que sejam alterações amplas, sistêmicas. Sempre se falou em reforma tributária, mas sempre sai uma emenda que muda uma bolinha aqui, outro artiguinho aqui. Nunca é uma alteração sistêmica.

Muitos acham que as diversas emendas que alteraram o sistema tributário de 1988 já o deformaram muito. Vai puxando aqui, esticando ali, vai criando umas coisas meio estranhas. Se for pensar em reforma, é melhor explicar qual é sua proposta para impostos, contribuições, Seguridade, com todos os itens. Senão pega um item de um, outro item de outro, vai criar um monstro.

Se não for tão difícil quanto a reforma da Previdência, talvez a tributária seja pior para aprovar. Quanto à Previdência existe um consenso de que precisa ser feita. Agora, a reforma tributária nem todo mundo acha que precisa fazer.

Tem gente que acha que sim, mas tem outros que desmistificaram que muitas coisas podem ser feitas sem mudar a Constituição. Uma reforma constitucional não vai resolver todos os problemas, e nem toda reforma precisa ser constitucional. Pode ser infraconstitucional, com ajustes em lei complementar, no Código Tributário Nacional (CTN) e em leis ordinárias de cada pessoa política.

Fonte: JOTA