Compliance de fachada também é ato de corrupção

Depois de mergulhar nos meandros da negociação de seis acordos de leniência com empresas investigadas por corrupção no país, a ex-ministra-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU) Grace Mendonça passou para o outro lado do balcão. Aos 50 anos, após 28 de serviço público, migrou para a iniciativa privada e, há cerca de um mês, abriu seu próprio escritório, onde continua a atuar com programas de integridade – agora, como representante das corporações.

Em entrevista ao Valor, a ex-ministra afirma que a Operação Lava-Jato alavancou o interesse das companhias em criar programas de compliance sob uma perspectiva preventiva. E manifestou preocupação com iniciativas superficiais: “Um programa de fachada também é um ato de corrupção.”

Para além dos acordos de leniência, foi de Grace Mendonça o protagonismo na conciliação dos planos econômicos e no arrefecimento da greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, durante o governo Temer.

Agora no papel de advogada privada, Grace comentou sobre como avalia que deva ser a interação ideal entre juiz e Ministério Público no curso de um processo – no atual cenário em que uma suposta promiscuidade entre essas relações vem sendo revelada pelo site “The Intercept Brasil”. “Os papéis não podem ser misturados, o que não significa ausência de diálogo”, afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Depois de seis acordos de leniência firmados na AGU, de que maneira avalia a realidade dos programas de compliance hoje?

Grace: As empresas, a cada dia com mais intensidade, tem buscado criar programas de compliance e, aquelas que já têm, trabalham para o seu refinamento. O grande diferencial é a questão a concorrência. Empresas que aprimoram seus programas de integridade saem na frente em uma disputa de mercado, já que, hoje, também é objeto de aferição o seu nível de tratamento em torno de seus princípios éticos, sua rotina de trabalho, a forma como dialoga com os públicos interno e externo, se de fato o programa de integridade traz uma segurança para o empresário e para os diretores.

Valor: A Operação Lava-Jato teve participação nesta tendência?

Grace: Sem dúvida. O olhar voltado a uma política de conformidade passa a ser mais atento quando se examina o cenário oriundo do trabalho desenvolvido pela Lava-Jato. Esse cenário acabou impulsionando as empresas a examinarem internamente seus programas, aferirem quais são suas bases éticas e, com isso, partirem para uma atuação muito mais propositiva. A mesma coisa em relação ao compliance. Quanto mais refinado o programa, mais as empresas se tornam competitivas. E há ainda a necessidade de um olhar para que o programa de compliance não seja de fachada.

Valor: Quais os efeitos disso?

Grace: Um programa de compliance de fachada é um ato de corrupção, porque acaba, de alguma forma, sendo tendencioso, a ponto de incutir na percepção do mercado uma informação que não é verdadeira. Assim, a empresa pode sair à frente em uma disputa, quando, na verdade, a sua realidade ética é outra.

“[O acordo de leniência] É uma excepcional ferramenta de combate à corrupção, quando bem utilizada”

Valor: Na sua avaliação, as estruturas de compliance têm a importância devida dentro da cadeia organizacional de uma empresa?

Grace: Em algumas, o que se observa é uma pequena coordenação, uma área singela – quando, na verdade, as corporações devem dar um status elevado para a diretoria, em que o responsável se reporte diretamente ao presidente. Porque essa é a área que vai zelar para que todos os processos de trabalho estejam alinhados. Quanto menos passos entre o diretor de compliance e o presidente, mais eficiente é o programa.

Valor: Hoje, qual o grau de consolidação, no âmbito de investigações, do instrumento da leniência?

Grace: É uma excepcional ferramenta de combate à corrupção, quando bem utilizada. As empresas precisam partir da boa fé na condução do processo e dar às instituições de Estado as informações que elas, por seus meios ordinários, não teriam condições de obter. É o que traz a alavancagem investigativa: um jogo transparente, com total abertura de informações, em que a responsabilidade da pessoa física é separada da responsabilidade da pessoa jurídica. Assim, mantém-se a higidez da pessoa jurídica para que ela continue desenvolvendo suas atividades, operando no mercado, com nível de concorrência ideal, manutenção de empregos e cumprimento de sua função social.

Valor: As empresas que assinam leniência não ficam manchadas com o selo de corrupção?

Grace: Na minha percepção, é o oposto. É um selo de que a empresa não teve vergonha de reconhecer que, no passado, algum episódio de desvio ocorreu e de cabeça erguida reformatou todo o seu programa de integridade.

Valor: Qual era a realidade dos acordos quando a senhora entrou na AGU? E quando saiu?

Grace: Assumi em um período em que os órgãos não se falavam. A Controladoria-Geral da União não dialogava com a AGU, que não dialogava com o Tribunal de Contas da União, que não dialogava com o Ministério Público. Eram atuações isoladas; uma desarticulação do Estado. Nós firmamos uma portaria para prever comissões mistas, abrindo portas de diálogo com todos esses órgãos, o que colaborou de maneira determinante para o formato que temos hoje. Foi sob essa perspectiva que assinamos seis acordos de leniência e equilibramos essa política, pois hoje só se tem acordos assinados nessas mesmas bases.

Valor: Nos bastidores, a senhora é reconhecida por ser uma boa negociadora. Como avalia isso?

Grace: Sempre acreditei no diálogo como a mais eficiente ferramenta de solução de conflitos. Os grandes litígios são equacionados de modo mais eficaz a partir de uma boa conversa. A construção de um acordo, porém, é sempre um grande desafio. É preciso trabalhar com um olhar atento para o equilíbrio entre as partes, indispensável para que todos saiam ganhando. A balança não pode pender mais para um lado. Uma negociação é positiva quando todos saem ganhando e perdendo em uma justa medida. Na mediação dos planos econômicos, por exemplo, os poupadores ganharam o recebimento de valores em percentuais mais elevados do que aqueles extraídos da média obtida nas decisões judiciais que lhes eram favoráveis. Os bancos, por outro lado, também ganharam, em especial pela capacidade de planejamento trazida pelo acordo. Puderam pagar parcelado, sem risco de quebra ou de ruptura do equilíbrio econômico-financeiro.

Valor: No ano que vem, o ministro Celso de Mello completa 75 anos e deixará o STF. Na posição de quem fez cem sustentações orais na tribuna da Corte, de que forma avalia o futuro do tribunal?

Grace: O Supremo perde um pilar. O ministro Celso é uma referência, no sentido preciso da palavra. Seus votos não são votos, são lições, das quais podemos extrair uma riqueza de princípios em torno das instituições democráticas. Tem uma memória fabulosa. O povo enxerga nele um homem que dedicou uma vida inteira à Suprema Corte. Ele é uma reserva ética. Seus votos são mencionados em uma infinidade de outros julgados, pois ele desenvolve seu pensamento com base nos princípios fundamentais do Estado de Direito. É uma marca dele, da qual vamos sentir muita falta. Mas a esperança que nós temos é a de renovação. De que, com a saída dele, o ministro que o substituir continue cumprindo a missão de ser um grande guardião da Constituição.

Valor: Sob a perspectiva da advocacia privada, como a senhora avalia que deva ser a relação ideal entre juiz e MP em um processo?

Grace: Equidistante. Cada qual tem um papel muito bem definido em nosso sistema. De fundamental importância a manutenção de uma distância de segurança, que não significa ausência de diálogo. O magistrado não somente pode, como deve ouvir o membro do MP e as partes envolvidas para que possa ter a mais completa compreensão da matéria que será por ele decidida. O membro do MP deve cercar-se de cautela nesse diálogo, mantendo-se adstrito aos termos do processo. Cabe-lhe, enquanto integrante do MP, cumprir seu dever de acusar, é verdade. Mas também cabe-lhe zelar pela ordem jurídica nacional, que tem como um de seus pilares a imparcialidade do juiz. Os papéis não podem ser misturados.

Fonte: Valor Econômico