Dedutibilidade fiscal do ágio nas incorporações: 42 anos de confusão

Há décadas o tema da dedutibilidade do ágio em incorporações rende inúmeras discussões por envolver autuações fiscais lavradas entre as de valor mais expressivo pela Receita Federal, por vezes na casa dos bilhões de reais.

Tal espécie de dedutibilidade fiscal, tratada em termos de uma amortização pela Lei 9.532/97, tem lugar quando ocorre um evento de incorporação entre uma empresa investidora e a sua investida e a participação societária de uma na outra tenha sido adquirida no passado com ágio.

Apenas uma parte deste ágio, classificada como rentabilidade futura, poderia, nos termos dos art. 7º e 8º da Lei 9.532/97, ser deduzido das bases de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), à razão máxima de 1/60 por mês, por meio de registros contábeis a que texto legal chamou de “amortização”.

Esta dedutibilidade ganhou fama de benefício fiscal introduzido por esta lei para supostamente incentivar grupos econômicos a adquirirem com ágio as estatais leiloadas no programa de desestatização à época em curso.

A esta especulação se somou o fato de a lei mencionada prever expressamente a possibilidade de dedução tanto nas ditas incorporações diretas, como nas reversas, isto é, esta segunda modalidade quando a empresa investida é que incorpora a sua investidora. Este artigo 8º teria sido introduzido, divulga-se até hoje, para incentivar grupos econômicos também estrangeiros a participarem destes leilões de privatização concorrendo em igualdade de condições com os nacionais ao também poderem gozar deste “benefício”.

Muitos ignoram, contudo, ser a dedutibilidade fiscal do ágio nas incorporações bem mais velha do que se supõe e possuir ainda um DNA bem diferente do de benefício fiscal ou do de despesa operacional.

Na verdade, incorporar para deduzir ágio é um fenômeno que assombra o fisco federal já desde os finais da década de setenta – portanto, há mais de quarenta anos – quando então a legislação do Imposto de Renda fora adaptada pelo Decreto-Lei 1.598/77 à realidade da tributação das sociedades anônimas e dos grupos econômicos. Logo, muito antes da Lei 9.532/97.

Dispunha o art. 34 do mencionado Decreto-lei 1.598/77 que, quando uma empresa incorporasse outra, em havendo investimento entre elas, era prevista a apuração de um ganho ou perda de capital resultante do confronto entre o valor contábil das ações ou cotas sociais extintas e o acervo líquido a valor de mercado que o substituía, isto é, o da empresa investida.

O art. 34 não discriminava qual tipo de incorporação, se apenas a direta ou se também a reversa, implicariam tal apuração. Mas, por se tratar de uma perda ou ganho de capital apurada apenas de um confronto entre o acervo líquido da investida a mercado e as cotas extintas do investimento nela própria, é relativamente fácil concluir não fazer diferença para a lei se a sucessora viesse a ser a investidora ou a investida. Logo, haveria apuração de ganho ou perda de capital tanto na incorporação direta, quanto na reversa, isto já desde as origens deste instituto, não tendo, portanto, o art. 8º da Lei 9.532/97 instituído qualquer inovação neste sentido.

Deste confronto, feito dentro da contabilidade, se apurado saldo devedor, este resíduo seria registrado no resultado do exercício como perda de capital, diminuindo o Lucro Líquido contábil e, consequentemente, a base de cálculo do IRPJ. Se credor, seria registrado como ganho de capital e tributado. Alternativamente, no caso do saldo devedor, a lei previa ainda a possibilidade de sua ativação no Diferido para amortização em até 10 anos. Este resíduo devedor era, em quase todos os casos, uma parte do próprio ágio. Vem daqui, portanto, a origem da amortização fiscal do ágio.

Com a Lei 9.532/97, os lançamentos contábeis de incorporação foram modificados pela legislação fiscal, a qual, à época, ainda tinha por praxe impor alterações na forma como os itens patrimoniais deveriam ser contabilizados no balanço das empresas.

A primeira alteração notável neste sentido foi a de acrescer aos itens patrimoniais da empresa investida, a partir da incorporação, apenas o saldo não realizado da diferença de valor de mercado destes apurada na época da aquisição do investimento (registrada como ágio do fundamento “a”), em vez de se basear em uma nova reavaliação a ser feita por ocasião do evento de incorporação. Com isto, prescreveu uma reavaliação dos ativos tangíveis da investida em regra ligeiramente diferente em relação ao antes previsto no art. 34 do Decreto-lei.

A segunda alteração trazida pelo art. 7º da Lei 9.532/97 foi determinar o reconhecimento dos intangíveis identificáveis no patrimônio da sucessora, dado que estes itens poderiam não estar relacionados no acervo líquido da investida. Com isto, deixou-se de reconhecer como perda de capital, como antes autorizado pelo art. 34, parcela do ágio pago que de fato era atribuível a um bem passível de ser alienado e, por conseguinte, passível de apurar um resultado não-operacional próprio.

Por fim, o resíduo devedor referente à perda de capital inerente a incorporações envolvendo investimentos com ágio passou a ser identificado com o próprio ágio rentabilidade futura. E esta perda não mais poderia ser deduzida de uma só vez do Lucro Líquido, mas “amortizada” em parcelas de no máximo 1/60 ao mês.

Ou seja, a Lei 9.532/97 não instituiu nenhum benefício fiscal e nem permitiu a dedutibilidade de uma “despesa” com amortização fiscal de ágio rentabilidade futura, a qual sempre foi vedada. Mas apenas dimensionou, de forma mais adequada, o tamanho da perda de capital antes prevista no art. 34 do Decreto-lei 1.598/77 por meio da alteração nos lançamentos contábeis de incorporação.

Quanto à razão de ser desta regra fiscal, a exposição de motivos da MP 1.602/97, depois convertida na Lei 9.532/97, informava que a justificativa para tais alterações seria combater planejamentos tributários, nada falando, contudo ainda, de benefício fiscal.

De fato, a partir daqui, a perda de capital passou a ser identificada claramente com um registro contábil o qual pressupunha uma expectativa de rentabilidade futura na empresa a que se referia o investimento. Se tal expectativa fosse altamente duvidosa, expunha mais facilmente para a fiscalização tributária um possível quadro de simulação para reduzir tributos, muito comum já à época.

Pois bem, embora este raciocínio desenvolva de forma simples e lógica no que consistia a tal amortização fiscal do ágio desde as suas origens, não prevaleceu esta explicação nem na doutrina nacional, nem da jurisprudência administrativa nos últimos 20 anos, isto é, sobretudo durante a vigência da Lei 9.532/97.

Em síntese, prevaleceu uma classificação de misto de despesa operacional com benefício fiscal passível de ser atribuído à totalidade do ágio pago. Ou seja, todo o ágio eventualmente poderia ser considerado como rentabilidade futura, e não apenas um resíduo para o qual não tivessem sido encontrado bens que pudessem justificar o valor pago pelo investimento. Este entendimento contribuiu para tornar ainda mais nebulosa a identificação da natureza jurídica de perda de capital da dedutibilidade do ágio no período de aplicação da Lei 9.532/97.

Se, por um lado, os contribuintes foram em tese beneficiados com tal alargamento da parcela dedutível, por outro, tiveram de passar a comprovar, mediante apresentação de um laudo e cumprimento de rigorosos requisitos formais, o óbvio, isto é, que adquiriram com ágio as participações societárias porque esperavam uma rentabilidade futura a compensar o investimento.

Como as exigências eram rigorosas e por vezes até criadas supervenientemente pela instância administrativa, comum era as empresas não as conseguirem cumprir e, consequentemente, as supostas perdas de capital serem glosadas ao fundamento de constituírem “despesa não necessária”.

Com o advento da Lei 12.973/2014, foi de uma vez por todas esclarecido ser o ágio rentabilidade futura ou goodwill um valor residual o qual não necessita de um laudo específico para provar o seu fundamento. O laudo que expressamente se exige pela atual legislação fiscal é, na verdade, outro, o de apuração dos ativos líquidos a valor justo. Cabe ressaltar, laudo semelhante a este já fora exigido pela jurisprudência do extinto 1º Conselho de Contribuintes antes da Lei 9.532/97, referente ao acervo líquido avaliado a mercado. As alterações introduzidas pela Lei 12.973/2014, portanto, recolocaram em evidência a natureza jurídica de perda de capital da dedutibilidade fiscal do ágio rentabilidade futura.

Hoje, pode-se dizer sem sombra de dúvida que a Lei 9.532/97 trouxe muita confusão ao dar uma roupagem de amortização de ágio rentabilidade futura à perda de capital inerente às reestruturações societárias em questão. Até porque o ágio rentabilidade futura é parte do investimento e, como tal, não pode ser amortizado para fins fiscais, mas apenas utilizado como parte do custo na apuração de um ganho ou perda de capital. Além de incorrer nesta impropriedade terminológica, a Lei 9.532/97 também fracassou no seu intento de conter planejamentos tributários.

Isto é, muitos grupos econômicos continuaram e continuarão a efetuar incorporações com o intuito de deduzirem ágio e sem que tal comportamento não necessariamente configure alguma espécie de abuso. Aliás, a manutenção desta antiga falha da legislação pela Lei 9.532/97 ao regular esta exata matéria acabou por ser entendida como proposital no sentido de se reforçar ainda mais o seu equivocado status de benefício fiscal numa forma de incentivo a aquisições e incorporações.

Uma pergunta cabe ser feita: se desde o início se tratava de perda de capital, por que os grupos empresariais sempre a perseguiram? Qual a lógica de se buscar uma perda para poder ter apenas uma parte dela aproveitada, no caso, para reduzir tributos?

A resposta pode estar numa má adequação deste tipo de regra de dedutibilidade, de raízes contábil e societária, com a cláusula geral do acréscimo patrimonial, prevista no art. 43 do CTN.

Isto é, este suposto decréscimo patrimonial, apurado conforme standards contábeis da época para os eventos de incorporação, não seria de fato realizado pelos contribuintes como, por exemplo, em alienação de ações com prejuízo na bolsa de valores. Por aqui então surgia o incentivo de incorporar para reduzir tributos.

Visto ainda por outro ângulo: incorporações funcionam na prática como uma permuta do investidor consigo mesmo, por meio da qual ele consegue “alienar” participações societárias em troca do acervo líquido da empresa investida. É esta permuta sui generis que põe em cheque a adequação do reconhecimento desta suposta perda de capital com a cláusula geral do acréscimo patrimonial.

Possivelmente, este decréscimo patrimonial só seria experimentado de fato pelos investidores numa realidade adstrita a companhias abertas cujas ações extintas possuíssem verdadeiro potencial de circulação – de onde, aliás, derivam na origem as regras contábeis e societárias em que foi baseada a legislação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas. Mas não na realidade das empresas de capital fechado, cujas participações societárias são em geral de baixo potencial de circulação. Isto porque, desde o início, entre seus investidores nunca se teria contado com a possibilidade de se converter em dinheiro uma fração do investimento. Logo, pode-se afirmar, melhor extinguir a participação societária por incorporação se disto resultar alguma vantagem tributária.

Assim, ao que parece, o problema da dedutibilidade fiscal do ágio nunca residiu em seus fundamentos econômicos – a despeito de há décadas se insistir em tal assertiva –, mas, sim, numa incompatibilidade sua com a cláusula do acréscimo patrimonial.

Mas, por que tamanha preocupação com a tributação de algo que vem a ser só um resíduo eventual, ainda por cima diluído em 60 meses ou mais?

Bem, a rigor, em muitos casos a expectativa de rentabilidade futura ou goodwill pode facilmente atingir 70% ou mais do valor do investimento. E este fenômeno tende a tornar-se mais comum, num mundo em que as empresas, sobretudo as maiores, valem, cada vez menos, pelos seus ativos tangíveis e intangíveis identificáveis e, cada vez mais, pela sua expectativa de rentabilidade futura.

E se a Lei 9.532/97 não conseguiu pôr fim ao incentivo indesejável inerente ao art. 34 do Decreto-lei 1.598/77 de se incorporar para deduzir ágio, também não se pode esperar que as modestas alterações introduzidas pela Lei 12.973/2014 possam operar este milagre.

Ou seja, se nada de diferente for feito em termos de alteração legislativa, ou se novas teses não surgirem para justificar uma interpretação restritiva coerente para este tipo de dedutibilidade fiscal, continuaremos a assistir nas próximas décadas a mais incorporações cuja intenção seja deduzir ágio e a mais confusões.

Considerando ainda que vivemos uma realidade de separação dos efeitos da nova contabilidade sobre a apuração dos tributos, certamente seria o caso de se empreender uma revisão mais profunda na dita dedutibilidade fiscal do ágio decorrente de incorporações.

Este artigo reflete a posição pessoal do autor e não da instituição.

Fonte: JOTA