Diário de um chefe de compliance: cultura corporativa

Em minha última visita ao Brasil, ouvi a seguinte a história de um velho amigo: uma determinada empresa monta um sofisticado programa de compliance e seu presidente convoca os diretores para uma conversa. Na reunião, diz algo como: “o programa está muito bom, mas não é para ser aplicado; seguiremos fazendo negócios como sempre”.

Num caso desses, mesmo o melhor programa do mundo nunca terá qualquer efeito no mundo real. Disse meu amigo que o presidente passou uma temporada no xilindró. Não sei se é verdade, mas é uma boa história. Ou pelo menos ilustrativa…

Um dos clichês recentes do mundo corporativo diz que a cultura come a estratégia no café da manhã. O sentido geral é que a cultura interna é muito mais importante do que planos de implementação, por melhores que sejam. E clichês existem por alguma razão.

O que define a cultura de uma empresa? Há milhares de livros sobre a questão e a eles nada tenho a acrescentar. Mas com relação ao compliance, o que a cultura empresarial significa? Na minha opinião, a questão pode ser resumida em uma pergunta: a empresa está preparada para perder um ganho imediato em troca de fazer a coisa certa?

Essa cultura se reflete em uma vontade honesta e sincera de fazer as coisas do jeito certo. Pouca gente discordará de uma definição genérica dessas. Mas o problema (ou o demônio) está sempre nos detalhes, na forma em que proposições genéricas são implementadas na prática (um pouco como o famoso dar a cada um o que é seu, o velho  suum cuique tribuere do Ulpiano, que aprendemos no primeiro ano da faculdade de Direito; a proposição é ótima, mas a gente passa o resto do curso – e da vida profissional –tentando resolver na prática o que é “suum” de cada “cuique”).  Isso porque no fundo a prova dos nove para uma cultura de compliance é saber se a empresa está preparada para perder um negócio lucrativo em troca de fazer a coisa certa. Se a resposta for não ou um silêncio de mais de 5 segundos, talvez exista um problema cultural.

O que deve fazer um profissional de compliance dentro de uma cultura ainda não compliant? Há duas alternativas. A primeira é sair correndo antes que seja tarde demais. Você vai acabar associando sua reputação a uma empresa que não está preparada para dar o passo que é o objeto do seu trabalho. Você corre o risco de ser um adereço para criar a impressão de algo que não existe.

Embora ainda não desenvolvidos no Brasil, existem precedentes de responsabilização pessoal de advogados e profissionais de compliance que não desempenharam suas atividades de modo satisfatório ou acabaram tornando-se praticamente cúmplices de ilegalidades por ato ou por omissão. Embora não pareça que isso vá acontecer no Brasil a curtíssimo prazo é sempre bom ver para onde as tendências mundiais caminham. Quanto mais conformidade se exige de empresas, mais rigor deve ser esperado em relação aos profissionais responsáveis por fazer isso acontecer. Portanto, fugir é uma alternativa razoável.

A segunda é ficar e fazer a cultura mudar. Alguns dos melhores profissionais de compliance que conheci se forjaram dentro de crises que revelaram aspectos sombrios das organizações em que trabalhavam. Decidiram ficar (ou entrar) e foram agentes de transformação depois de trabalharem muito duro (aliás, alguns dos melhores programas de compliance que conheço vêm de empresas que tiveram episódios muito sérios de não conformidade).

Essa é uma tarefa sublime mas requer ao menos três condições simultâneas: (i) determinação genuína e apoio incondicional da alta direção para mudança da cultura; (ii) recursos suficientes (materiais e humanos) para criar mecanismos efetivos para a conformidade e (iii) autoridade inquestionável para implementar o plano (se o gerente de fábrica pode contestar suas determinações, é melhor sair).

As perguntas a serem feitas sempre serão algo como: “Minha empresa quer realmente mudar?”, “Tenho todas as condições de implementar a mudança?” ou “Minha empresa está preparada para abdicar de algum lucro para fazer o certo?”. Se a resposta for não ou existir alguma hesitação, o melhor a fazer certamente é ir embora. Ninguém gosta ou almeja ser uma figura decorativa que não tem qualquer impacto na vida real. Ou, como se dizia lá no meu interior, ninguém quer ser santo de prostíbulo, uma folha de figo de virtude para esconder um ambiente licencioso.

Cedo ou tarde, por bem ou por mal, essas organizações também chegarão à conclusão de que o outro caminho não compensa. Mas, enquanto esse momento não chegar, não há muito o que fazer sem se colocar a sua reputação como profissional em risco (ou, pior ainda, ser processado por isso). Há milhares de organizações que querem fazer o que é certo. Certamente haverá uma que precise de um bom profissional de compliance.

Porém, se as condições estiverem presentes, abre-se a fantástica oportunidade de influenciar uma cultura organizacional e ter um impacto real na vida de milhares de pessoas. Evitar corrupção a partir do lado da oferta (ou seja, o setor privado; o lado da demanda em geral é o setor público) tem um impacto direto e relevante na sociedade. E dezenas de externalidades positivas para todo o ambiente de negócios. Certamente é um desafio que vale a pena considerar e mesmo correr algum risco. Afinal, como dizem os antigos, a sorte ajuda os fortes.

Artigo por Martim Della Valle – Responsável global pelas áreas de Compliance, Concorrencial e Contencioso da Anheuser-Busch InBev.